Parte I : Antes do baile verde
Hoje a grande escritora Lygia
Fagundes Telles faz 90 anos e não podia deixar de homenageá-la aqui no meu
blog. Lygia tem romances memoráveis como Ciranda
de pedra, Verão no aquário e As
meninas.
Comecei
a ler a obra da escritora paulista pelos contos e meu livro preferido de Lygia
é Antes do baile verde.
Já no primeiro conto desse livro
chamado “Os objetos” aparecem o tema do amor e do ciúme e o final enigmático
que caracterizam outras narrativas da coletânea. Os delírios e a insegurança do
marido em relação aos sentimentos da esposa e levam o leitor a se perguntar
será que ele vai simplesmente sair para comprar biscoitos ou vai se matar com a
adaga comprada pelo casal? Para mim, não passa de blefe do homem, mas cabe a
cada leitor dar a sua interpretação a esse conto de final aberto.
Na segunda narrativa, “Verde,
lagarto, amarelo”, a trama gira em torno do escritor e leitor de Dostoievsky
Rodolfo e a rivalidade deste com o irmão Eduardo num conto de final genial.
O terceiro conto, “Apenas um saxofone”, uma história sobre amor e
perda, cuja protagonista é uma mulher rica, mas infeliz que troca de nome
e só queria ouvir de novo seu grande
amor tocar saxofone.
O instrumento volta a aparecer
em “O moço do saxofone”, um dos meus contos preferidos de Lygia, uma narrativa
de amor, traição e música que se passa numa insólita pensão cheia de anões, que
surpreende o leitor.
Em “Helga”, a protagonista usa
uma perna mecânica e na narrativa Lygia trata do lado cruel e ambicioso no ser humano.
No conto que dá título ao livro,
“Antes do baile verde”, a protagonista se prepara para ir ao baile de carnaval mesmo
com o pai moribundo.
O conto “Caçada” me parece
servir de exemplo de conto cujo fim pode ter várias interpretações, deixando
dúvidas no leitor. O personagem do conto de Lygia fica fascinado por uma velha
tapeçaria que retrata uma caçada. Como o leitor de um texto literário que se
imagina no mundo ficcional criado pelo escritor, o homem se vê dentro da
“tela”. Ao fim da narrativa deixa-se no ar que o homem foi atingido pela seta
que ele vê na tapeçaria. Seria apenas imaginação do homem? Ou será que dentro
do jogo ficcional e fantástico proposto por Lygia o homem se incorpora à
tapeçaria que tanto o obceca e vira objeto de “caça”? Por que tal obra, mesmo
quase aos pedaços, o encanta e ao mesmo tempo o perturba tanto? Como leitora,
respondo afirmativamente à segunda pergunta, mas essa não me parece (e nem
pode) ser a única leitura da bela narrativa de Lygia.
Na narrativa “A chave”, que
trata de um relacionamento desgastado entre pessoas de idades diferentes, o
final também me parece ambíguo: Thomas , insatisfeito com o casamento com uma
mulher fútil, volta para a ex-mulher ou sonha que o fez?
No conto seguinte, “Meia-noite
em ponto em Xangai” a protagonista é uma cantora lírica que tem preconceito com
empregado chinês, numa narrativa cheia de mistério e tensão no fim, fazendo o
leitor prender a respiração.
O mistério — marca de muitos
contos de Lygia — também é predominante no conto “O jardim selvagem” com a
figura enigmática e ambígua da cruel Daniela intrigando o leitor.
O conto “A janela” é construído com base nas lembranças e
delírios de um homem que perdeu o filho. As belas descrições da roseira que
encantava o rapaz morto suavizam o clima de tensão da narrativa.
No conto “Um chá bem forte e três xícaras”, a linda
descrição de uma borboleta encanta o leitor com a narração de os preparativos
para um chá.
No magistral “Natal na barca”,
meu conto preferido de Lygia, a narradora viaja com um velho e a mãe de uma
criança, que pode ser comparada a uma santa como Nossa Senhora por suportar as
tragédias da vida. A atmosfera soturna e tensa da narrativa é oposta à alegria
das celebrações de Natal e o final, inesperado.
No conto “A ceia”, o tema é o
ciúme de mulher inconformada com a separação.
O ciúme também move a trama de “Venha ver o pôr do sol”.
Dando um título romântico ao conto a autora subverte as expectativas do leitor
com final aterrorizante.
Outro conto que tem como tema o ciúme é “As pérolas”, mas
nessa narrativa o marido doente e enciumado é mais sutil que os personagens dos
outros contos com essa temática.
No conto “Eu era mudo e só”, o
narrador é um marido entediado e oprimido pelo casamento. Nessa narrativa o
título remete à intertextualidade com o poeta português Guerra Junqueiro. No
poema citado no conto o eu lírico também está se sentindo só e oprimido como o
personagem de Lygia. Transcrevo abaixo a primeira estrofe do poema:
COSMOGÊNESE
Guerra Junqueiro
Eu era mudo e só na rocha de granito.
Por sobre a minha fronte a sombra do infinito,Em volta a solidão,Escuridão sem fim:Negra como o terror, triste como Caim.A abóbada celeste ameaçadora e bruta,Tinha o ar concentrado, o ar de quem escuta.A treva, espião de Deus, imensa, indefinida,Vinha apagar a luz para espreitar a vida.Sentia-se um olhar naquelas sombras mudas
Vale notar que o narrador do
conto de Lygia não retrata um mundo negro como o do autor português, mas um
mundo colorido, em que vive de aparência, o que não o faz feliz.
No último conto do livro, “O
menino” um garoto esperto vai ao cinema com sua linda mãe e a trama surpreende
o leitor.
Em todos os contos há uma certa
tensão e o final enigmático ou surpreendente, que prende a atenção do leitor . Por
isso, Antes do baile verde é um
grande livro que revela a maestria de Lygia como escritora.
Nenhum comentário:
Postar um comentário