Parte 2- Invenção e memória
Outro livro de contos de Lygia
muito interessante é Invenção e memória. Nessa
obra, usando a primeira pessoa, a escritora paulista trabalha a fronteira entre
realidade, ficção e memória para tecer narrativas que, na maioria das vezes,
enveredam pelo fantástico e pelo sobrenatural. Vou fazer comentários breves
sobre alguns contos desse livro.
Na primeira narrativa, “Que se
chama solidão” a narradora recorda as pajens que lhe contavam histórias de
terror quando criança e que lhe inspiraram o gosto pelo gênero fantástico tão
marcante na obra de Lygia.
No curioso “Suicídio na granja”,
o leitor se depara com a bela amizade entre um galo e um ganso, num conto
diferente sobre o tema do suicídio.
Na linda narrativa “Dança com o
anjo”, a estudante de direito dança com um belo rapaz louro que a protege numa festa,
mas não fica claro se a dança realmente aconteceu ou se tudo não passou de
imaginação da narradora num momento lírico do livro, que encanta e surpreende o
leitor.
Em “Cinema Gato Preto”, Lygia
relembra a experiência de ver filmes de vampiro da era do cinema mudo num
cinema do interior e analisa criticamente os filmes do gênero.
A figura do vampiro reaparece
num dos mais belos e intrigantes contos do livro. Em “Potyra”, um estranho
vampiro europeu conta a uma jovem sua vida agitada e fala de seu amor pela
índia Potyra numa história criativa e fantástica em que Lygia trata de temas
como o amor, a colonização da América, a violência.
No conto “Heffman”, Lygia
relembra a livraria Jaraguá em São Paulo e se revela leitora de Faulkner,
Dostoievsky e Jane Austen. A narradora do conto também fala de sua experiência
no teatro amador numa narrativa bem interessante.
O mundo literário e o cinema também entram em cena no conto “Rua Sabará,
400” em que Lygia trata da ambiguidade de Dom
Casmurro ao adaptar o romance de Machado para o cinema com o marido e
cineasta Paulo Emílio Salles. A
discussão sobre o enigma de Capitu e as memórias do convívio feliz com o
segundo marido constroem uma deliciosa narrativa de tom familiar.
Em “Se és capaz”, Lygia dialoga
com Kipling num conto em que o narrador ganha o poema “If ”do avô , mas sua em
sua vida de político não consegue se portar com a virtude e coragem expressas
pelo eu lírico do poema do escritor inglês. Nessa narrativa, que me fez
conhecer a obra de Kipling, a escritora paulista aborda com ironia, amargura e humor temas como a virtude, a corrupção, o
casamento e a velhice.
Em outros contos como “O menino e
o velho”, Lygia se aproxima do cotidiano ao narrar a história de um senhor que
ajuda um menino de rua num conto de desfecho trágico.
Na narrativa “Dia de dizer não”, o
cotidiano de São Paulo e suas mazelas como acidentes de transito e pedintes é
rememorado num conto de crítica social e em que a autora paulista dialoga com
Santo Agostinho.
No conto “A chave na porta”, a
narradora consegue a carona de um amigo na noite de Natal num conto muito bem
construído em que realidade e imaginação se misturam e o final da narrativa
intriga o leitor.
É exatamente essa capacidade de
entrelaçar ficção, imaginação e memória seja indo beber nas águas do
fantástico, da literatura e do cotidiano com seu estilo inconfundível que mostra a maturidade da autora de As meninas e faz
de Lygia Fagundes Telles uma das maiores escritoras da literatura brasileira.
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